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Desproduzindo conteúdo

A vida degenerou em excesso de conteúdo, matéria-prima vazante que transborda por todas as latitudes, cada usuário o usurário de si mesmo, o explorador de sua própria mão de obra, da qual não extrai qualquer ganho salvo uma ou outra ninharia, com a qual se contenta ao final dessa jornada camusiana rumo ao abismo. Por que produz, então? Porque o horizonte é o da imediata monetização, da rápida conversão de toda experiência ou trivialidade no papel-moeda digital que estrutura a elaboração narrativa, alimentando-se a roda do engajamento dia e noite, seja no discurso textual ou no audiovisual (da propaganda ao cinema, passando pelo jornalismo). Disso são exemplares atualmente esses tantos vídeos com legendas, expediente cuja funcionalidade parece ter se perdido de vez. Antes empregadas para assegurar a acessibilidade, agora operam não mais como um apêndice, mas como um adorno da encenação que, de tão extravagante, acaba por ocupar toda a cena, esvaziando o sentido de qualquer lógica de tr
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Necessário, atual e urgente

Leio que tal obra ou qual filme é não apenas atual, mas também necessário, de modo a enfatizar uma ideia já presumida quando se diz que um produto qualquer interpela o presente de muitas maneiras, ou seja, que é contemporâneo, naquele sentido atribuído por Agamben. O parafuso começa a dar mais uma volta, porém, quando, além de atual e necessário, o livro é também urgente – ou o filme, ou o espetáculo, ou aquele comentário certeiro na rede social e por aí vai –, o que faz de imediato acender um alerta laranja, que começa a piscar intermitentemente, produzindo apreensão e algum grau de histeria tendo como música de fundo um zumbido crescente. Ora, não bastassem a atualidade, predicado já de bom tamanho, e a necessidade, que dispensa comentários, visto que se impõe por si, havia de sobra essa urgência superlativa que desautorizava acréscimos, validada unicamente numa tautologia: era urgente porque se tratava de uma urgência, e a urgência, por sua vez, amparava-se na natureza explicitament

Sangria

Gosto de como soa a palavra sangria em alusão a esse transbordamento d’água do açude em tempos de céu escuro, de como tenta abarcar um fenômeno que, na verdade, extrapola seu sentido imediato, que é o do escoamento, numa semântica hidráulica que se mecaniza se examinada apenas sob esse ângulo. Mas sangria quer dizer mais que apenas verter esse volume líquido que ocupa um espaço e que, por excesso de precipitação, quando o inverno é bom para molhar e para plantar, acaba por extravasar. Quem é de fora do Ceará talvez não entenda o que significa ao pé da letra não o vocábulo em si, de resto ordinário, mas o conjunto de sensações e memórias que a sangria evoca quando passa a circular em meio às chuvas. Nessa contagem volumétrica que vai num crescendo ao longo da estação até atingir um clímax, regulando o calendário, transmite-se bem mais que a acepção de uma passagem. De repente, como se por efeito dominó, os açudes e os rios se comunicam, as águas de uns sobrepondo-se às de outros, que as

A sua pior versão

Ouço com frequência a frase encorajadora “seja a sua melhor versão”, de modo a sugerir que o ouvinte se apresente com uma roupagem mais interessante, performando em chave estética suas ambições existenciais e profissionais. Uma versão não substantivamente diferente, é verdade, mas em aparência mais atraente do que a versão inferior, numa operação que é mais de customização de personalidade do que de autoaprendizado ou qualquer modalidade que requeira maturação. E é isso, de fato, que é mais curioso nessa história: que tenha prosperado a crença, ainda que limitada a certos discursos gerenciais, em que possa haver edições distintas de si mesmo, como um aplicativo que fosse gradualmente aprimorado e lançado para a venda, substituindo o modelo anterior, que logo também estará defasado e predisposto ao descarte, inservível para o que vem pela frente. Uma obsolescência programada do próprio eu, feito de material volátil, fluido e barateado. Num dia, molda-se a tal ou qual novidade, turbinad

Médico e monstro

Penso na gincana de nudez médica durante um evento esportivo da universidade, na mistura entre provocação e ato obsceno cuja destinação era o próprio ginásio, repleto de meninas e meninos, ou seja, a comunidade escolar como um todo, sem restrição. A exibição do falo como medida de orgulho em desfile competitivo, sua ostentação como totem de masculinidade, a desinibição performática que se confunde com esse sentido mais liberado de classe. Aos ricos ou muito ricos, tudo sempre desobstruído, os caminhos alargados, sem esses obstáculos que normalmente se interpõem aos montes, atravancando e mesmo vedando o acesso desses outros aos círculos mais bem posicionados. A hipervisibilização do pau é também demonstração de força e poder. Força de classe, poder de despir-se sem que nada de mais grave lhe ocorra. Exceto na hipótese de um acidente de percurso, logo depois corrigido, como um vídeo que vaza, escorregando para fora do circuito habitual de consumo e reclamando punição à altura na esteira

Pedagogia do remendo

O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja com habilidade particular. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga da terra. Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico senador evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local se vê confrontada com um impasse, a saída costumeira é recorrer ao paliativo, lugar de chegada de todo esforço. Ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer? Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo ontologicamente contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto, a arquitetura da lacu

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela.