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Autoria "fantasmática" na tetralogia de Elena Ferrante (trecho)

  A tetralogia de Elena Ferrante é assinada por um nome postiço, um artifício que não desvela um rosto, encerrando-se em si mesmo e instaurando uma interrogação: quem está por trás da história? Quem sustenta a sua linguagem? Quem a escreve? Trata-se de autobiografia, no sentido que lhe atribui Lejeune (2014), ou inteira fabulação, e nisso o pacto mesmo se recombina? Sem conhecê-la, sem haver de sua escritora nada mais que pegadas biográficas que a autora distribui no curso de entrevistas e artigos publicados, que protocolos de leitura são acionados pelo leitor no ato mesmo de fruição da narrativa? E que regime de autoria é mobilizado por esse processo de mascaramento de uma identidade de cuja existência sabe-se quase nada, exceto que se trata de mulher que tem filhos e já morou em Nápoles, cidade ao sul da Itália, um perfil comum a outros tantos? Por fim, cabe interrogar, à maneira de Foucault: importa quem fala? Longe de escamotear subjetividades, a operação de disfarce sob pseudô...
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Segunda temporada de “The Last of us” chega ao fim – ainda bem

  A título de introdução, quero deixar claro que este não é um texto de “fã”, ou seja, alguém cujo evangelho íntimo prescreve absoluta reverência a obras e personagens consagrados, para os quais passa a exigir fidelidade caninamente devocional. Dito isso, a segunda temporada da série “The Last of us” , adaptação de um jogo de videogame produzida pelo HBO Max (ou apenas Max, ou só HBO), me fez querer voltar ao game imediatamente. Não por saudosismo ou qualquer outro ímpeto consumista, entenda-se, mas porque não queria que o retrogosto amargo deixado pela produção audiovisual se mantivesse por muito mais tempo. Isto é, eu queria apagar rapidamente grandes porções da nova temporada, a cargo de Craig Mazin e de Neil Druckmann , notadamente aquelas responsáveis pela metamorfose de Ellie, vivida na TV por Bella Ramsey , uma atriz fenomenal que esteve boa parte do tempo à mercê dos maneirismos de um diretor que olhou para o produto original e pensou: eu posso estragar isso aqui com u...

A arte da resenha negativa

 Não há dúvida de que a resenha negativa é uma arte da qual poucos se servem, mas cuja leitura costuma recompensar, seja pela raridade do gênero, pouco encontradiço nas páginas das revistas e dos jornais, seja pela falta de jeito que o exercício da crítica em desfavor da obra (e eventualmente de seu autor/autora) implica. As vantagens da escrita da negatividade (chamemos a coisa assim) se contam aos montes, todavia. Desde a injeção de ânimo e oxigenação de um ambiente cultural que se compraz com as platitudes habituais (uma república de tapinhas nas costas), até a descarga elétrica que uma tal manifestação faz disparar em todo o circuito artístico. De pronto, tão logo o texto ou o vídeo ou o podcast com a apreciação menos elogiosa se torne público, uma cadeia de pequenos acontecimentos sísmicos se transmite, indo de uma ponta a outra da planície antes pacificada, desarmonizando os jogadores desse campo (escritores, pintores, cineastas, curadores, músicos etc.). Algo do tipo se viu ...

“Urikianas”

De memória, lembro do bar e o do rosto miúdo atrás dos olhos apertados, reluzentes, afogueados. Que ano era aquele? Tinha pressa, queria conversar, mas já estava de partida. Durante todo esse tempo, tive essa impressão de que era dessas pessoas que falavam enquanto se despediam, instaurando nesse movimento uma presença-ausência precocemente exibida. Parte de si ia embora, outra estava apenas de chegada, num desencontro de corpos e de tempos. A quem me perguntasse, dizia: estou esperando o livro que Urik escreve, tenho certeza de que guarda algo, de que é o portador de um segredo muito bem escrito, de que o que se lê é apenas ensaio, um jogo que se arma nessa vacância de espírito, exercícios de prazer. Então deu-se o sumiço. Soube que viajara, que estava longe, que exorbitara as fronteiras, que se desvanecera. Onde agora? Minas seria um paradeiro possível, no Rio fora visto entre árvores, em São Paulo uma fantasmagoria, esse perfil sem contorno que às vezes assumia mesmo em Fortaleza,...

A festa do barco

  Quarenta anos é o tempo do navio encalhado na orla, o Mara Hope, quatro décadas de corrosão ininterrupta, de marés engolindo aos poucos os braços e pernas da embarcação cuja história a levou a se prender a um banco de areia depois de uma tentativa fracassada de resgaste. Uma noite, ou durante o dia, não sei, os cabos se desataram, talvez os tenham cortado, e então o navio se pôs em movimento, como se se cansasse do destino que o aguardava, mas logo deu com os burros n’água. O barco extraviado hoje incorporado à paisagem da cidade quase tricentenária, instituindo-se como um marco fundacional do olhar, concorrente da ponte (velha e nova, que também é velha), do farol e do calçadão, todos pertencentes a uma memorabilia urbana e a uma iconografia sem a qual a praia, sempre sob aterro, seria irreconhecível após tantas intervenções desarmoniosas. Mas o que se vê na carcaça destroçada do animal metálico reduzido ao oco pela ação devoradora do sal e dos anos? Talvez o símbolo da transiç...

Uma linhagem de sorte

  Li que privilégio mesmo é ter um avô diplomado, ou seja, que estudou e se formou na faculdade, exercendo uma profissão que, nos tempos idos, normalmente era direito ou medicina ou engenharia, e imediatamente lembrei dos meus avós. Por não tê-los conhecido, até poderia supor que fossem escolados, mestres e doutores em alguma arte, ás de fabulações e engenhosos construtores, mas a verdade é o inverso, eram pessoas como costumam ser os pais e mães de nossos pais e mães, salvo uma exceção. E agora me pego sopesando a frase, talvez porque os avós formados de que ouvi falar pela primeira vez na vida foram os de um colega da faculdade, um espécime raro para quem eu olhava e diante do qual minha vida até então se contrastava diametralmente. Os pais médicos ou advogados, não recordo, e, antes deles, a geração mais antiga, de modo a se criar uma cadeia sucessória ao fim da qual era natural que ele também acabasse por escolher a medicina ou o direito, já que “estava no sangue”, como um dote...

Fortaleza, 299

  Começo por essa arqueologia numérica, “299”, algarismo cuja fama se justifica apenas por estar perto do vizinho mais famoso, como um desses ex-BBBs que depois precisam se esforçar para serem lembrados pelo público. A data é marcante mais pelo que falta – uma unidade para chegar aos “300”, esse, sim, imponente e convidativo à reflexão – do que pelo que representa por si, como se nisso acabasse também por produzir um retrato mais fiel da metrópole à beira do tricentenário. Na cidade cujo lema informal é “tem, mas tá faltando”, a frase (que traduz o 299 à perfeição, talvez) poderia muito bem substituir “fortitudine” no brasão oficial. Empregado por todos os prefeitos desde a redemocratização (à exceção do visionário Juraci Magalhães, que tinha seu próprio bordão), o símbolo da municipalidade contrasta um forte com dois ramos de planta, um de algodão e outro de fumo. Os galhos verdes, ainda em florescência, erguendo-se contra o céu azul, em alusão ao que é sempre projeto. Eis outra ...